... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...


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Em associação com Casa Pyndahýba Editora

Ano I Número 3 - Março 2009

Conto - Gey Espinheira

A Visita

para Fernando Roque de Lima

Ele procurava alguma coisa para dizer. Ela tinha 19 anos. Disse isso duas vezes, porque foi por duas vezes, sem saber, que ele lhe perguntou a idade. O nome lhe parecia incerto. Teria ela dito que se chamava Mariane? Mariana? Juliana? Não seria delicado perguntar-lhe o nome outra vez. Ela o esperava e era urgente dizer algo, senão ela poderia desaparecer e levar a beleza e a juventude que o desafiavam no sorriso conjecturado que poderia ser um simples sorriso amistoso ou transformar-se numa gargalhada terrível. E ele disse: “São lindos os seus cabelos”. Ela respondeu prontamente – “ Não são meus, é peruca. Aliás tenho muitas perucas. Também gosto desta, obrigada.”

Ele ficou momentaneamente desconcertado. Ela o olhava com olhos castanhos bem redondos e eles expressavam uma enorme agitação e pediam pressa. Sabia ela da eminência de eclipsar-se? – “Seus cabelos, como são seus cabelos?” Ele quase gaguejou. Sorriu sem graça enquanto suas mãos nervosas se apertavam numa luta de dedos que se mexiam como vermes vertebrados.

– São bonitos, gosto deles. Mas gosto também de não ser a mesma coisa sempre.

– Mas... é, as mulheres podem mudar o penteado e com isso mudar a aparência e parecer outra pessoa –, ele afirmou com certa segurança.

– A gente não pode ser diferente com o que é da gente. Cada penteado é um penteado em você mesma. Compreendeu?

– Acho que sim, acho que compreendi –, ficou sem saber como prosseguir. Ela arfou novamente, os seios se levantaram, também a cabeça que foi jogada para trás. Ele temeu que ela desaparecesse naquele momento, mas isso não se deu. Ela exalou o ar, piscou os olhos que pareciam ternos agora. Ela tocou com a mão esquerda os cabelos que lhe desciam sobre o ombro também esquerdo.

– Esta bem? – Perguntou ele dominado por uma inquietação crescente.

– Estou, estou, não pareço?

Era a primeira pergunta que vinha dela. Concordaria? Não era o que achava, afinal ela demonstrava muita ansiedade, arfava freqüentemente como se o ar fosse penosamente captado e difícil de ser retido.

– Parece –, cedeu diante da possibilidade de contrariá-la.

Então ela sorriu. E que sorriso? Não chegava a ser gargalhada tão temida, mas era um sorriso quase diabólico porque o reduzia a coisa alguma, era aniquilador. Naquele sorriso havia piedade e desprezo, simpatia e comiseração. Um sorriso que se dá a um idiota, e era isso que ele era, pelo menos era assim que se sentia naquele momento.

Ela fez um movimento com as mãos e tirou para fora da blusa, baixando o sutiã, o seio esquerdo. Pareceu-lhe que era algo que se projetava dela, como se nascesse subitamente do seu corpo, algo que ali antes não estivesse. Era grande, pontudo, absolutamente insuspeitado. Ele fixou-se naquela coisa absurda que apontava diretamente para os seus olhos. Ela conservou o sorriso que assumiu um ar de certa crueldade e eram seus olhos que sorriam com crueldade maior.

Ele ficou imóvel, fixado nela, confuso. A mulher ao se desnudar metamorfoseava-se. Quando ele pode, então, e depois de algum tempo, olhá-la nos olhos, ela fez o mesmo com o seio direito e eis que novamente brotava aquela coisa fascinante que a projetava numa outra forma, numa outra dimensão. Pareciam duros porém macios, e enormes aqueles seios que a expandiam, pois agora que a blusa fora totalmente aberta e puxada para trás, também revelava um pescoço forte, curto, e era como se ela estivesse saindo de seu casulo, alada.

– Meu Deus! –, exclamou ele num murmúrio.

Ela continuou eliminando as vestes que a cobriam e os cabelos agora bem divididos sobre os ombros era como um véu escuro que destacava sua cabeça, pescoço e ombros e faziam dos seios parte de um conjunto.

– O que você quer? – perguntou ela languidamente.

– Você poderia ficar em pé? – balbuciou.

– Posso até voar –, ela respondeu com prontidão como se estivesse reagindo a um desafio sobre suas possibilidades.

– Não, por favor não voe. Quero você completa. – disse ele quase desesperado.

Ela tirou o sutiã que estava enrolado à altura do umbigo. Tirou também as asas de tecido e ergueu-se numa ascenção majestosa e com tal firmeza de gesto que a ele pareceu que cumpria-se a ameaça de voar. E para fazer o que fez, ela aproximou-se de tal modo que agora estava a poucos centímetros de distância, portanto, ao alcance de suas mãos. Estava suficientemente próxima para não mais poder ser vista por inteiro e os olhos dele viram extasiados a aparição do ventre e nele a escassa cobertura de pelos. A luz do abajur que trespassava entre as colchas que ondulavam, naquele momento, com o movimento de uma e da outra perna para desfazer-se da roupa, e logo a firmeza, a imobilidade desafiadora da nudez vista contra a luz e na parcialidade do vão das pernas.

Ele, num movimento brusco e imprevisto, puxou-a para si com as mãos em concha nas nádegas da mulher, precipitando-a bruscamente para o rosto o seu ventre, como se mergulhasse de cabeça para nele desaparecer por inteiro e fugir da própria visão que o encantava.

Aturdido pelo cheiro, pelo gosto, e de olhos fechados contra os pêlos, sacudido pela vibração do corpo consistente que segurava com firmeza, chorou compulsivamente, enquanto que ela o puxava mais e mais para si. E ela então disse o que ele não pôde ouvir: – entre, a casa é sua, pode morrer nela.

Quando ele estremeceu, sentiu o salgado de suas próprias lágrimas e a umidade que vinha de dentro da mulher. Descolou, lentamente, o rosto e manteve os olhos fixos, bem abertos, e como uma lente zoom que distancia o objeto focado, recuou vendo o ventre vermelho e incandescente perder sua extraordinária dimensão e tornar-se parte integrante da mulher colossal que se erguia em sua frente. Projetou-se para trás e soltou-a completamente, erguendo-se muito acima dela e agora podia vê-la de toda a sua altura. Distanciou-se aproximando-se da porta. Os olhos castanhos escuros e os seios o olharam. Ele sorriu, ergueu os ombros. Sorriu mais descontraído, quase aliviado. Ela devolveu-lhe o gesto com uma expressão de ternura nos olhos e na boca.

– Posso voltar outra vez? – perguntou arfando enquanto passava o lenço no rosto. Ela disse sim com um balanço da cabeça.

– Você me espera? – ela respetiu o gesto.

– Eu prometo que me comporto de modo diferente – disse, baixou os olhos para acompanhar a própria mão que retirou do bolso da calça o dinheiro dobrado, previamente separado, que depositou sobre o braço do sofá.

– Qualquer dia?

Ela disse sim, desta vez com sua voz e acrescentou após um curto intervalo silencioso: – “Quando desejar.” Ele sorriu gratificado e depois de outro tempo de silêncio, perguntou: – Posso lhe amar?

– Não foi para amar que veio?

Ele sorriu. – Mariana?

– Sim, Mariana – respondeu ela ternamente.

Ele estendeu-lhe a mão. Ela hesitou, mas acompanhou-o no gesto e ele disse: – Prazer, José.

Ela disse: – Igualmente.

Ele disse que voltaria e ela que o estava esperando. Deram-se boa noite. Abriu a porta e ele desapareceu. Ela começou a recompor seu casulo, peça por peça, até tornar-se insuspeitadamente pequena quando já coberta sentou-se no sofá, acendeu o cigarro e soltou a fumaça que parecia ser o vestígio de seu próprio evanescimento.