... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...


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Em associação com Casa Pyndahýba Editora

Ano I Número 3 - Março 2009

Tradução - Renato de Almeida Martins

Elaine Garvey
Elaine Garvey é irlandesa, e tem vários trabalhos publicados na revista Dublin Review Magazine. Este conto foi originalmente publicado na coletânea "Dogs Shot From Cannons - New Fiction and Poetry", WhollyTrinity editora, no projeto Criative Writing do Trinity College, Dublin. Título original No Banana Skins.

Sem Cascas De Banana

É incrível o que as pessoas deixam pra trás quando estão longe de casa. Eu fico imaginando se há uma Sociedade de Caçadores de Tesouros Subterrâneos, em que seus membros deixam pés de sapato e meias em partes distintas da cidade. Hoje, por exemplo, tinha um sapato de homem, de um marrom gritante sem cadarços nem vincos. Ao enfiar a mão no sapato, notei que tampouco havia marcas de dedos, mesmo por dentro, o que me intrigou. Por que tinha sido abandonado? Ele estaria seco se ficasse apenas alguns dias atrás da porta da varanda, aí então eu poderia colocá-lo no guarda-roupa com o resto da coleção.

Eu fico fora de casa o máximo possível, para evitar sua atmosfera. Se eu pudesse me multiplicar e ocupar todas as cadeiras de uma só vez, talvez pudesse acabar de vez com essa ansiedade. Sirenes me acordam de vez em quando no meio da noite – não sei dizer se elas são de polícia ou de ambulância – mas me sinto bem com o barulho. Poderiam ser várias pessoas morando aqui. Certas vezes me deparo com seus nomes nas cartas deixadas por engano debaixo da minha porta, mas eu as largo em cima da mesa do corredor e me esqueço delas.

Eu caminho no canal todos os dias. Não que eu sinta falta de suas águas poluídas – posso vê-las pela janela da cozinha – mas porque foi o último lugar onde fui com Cora. Ela escolheu esse caminho, era uma tarde seca de domingo, eu a segui, e decidi não dizer que eu teria ficado mais feliz se caminhássemos ao longo do rio. Entre a eclusa vinte e sete e vinte e oito eu me virei para lhe perguntar se ela achava que os patos estavam sufocando, quando percebi que eu estava sozinha com as algas e as rodas de bicicleta. Agora eu faço esse caminho, vivo me dizendo, é para procurar pistas.

É um lugar não inspirador, uma dimensão artificial que sugere tudo que é ruim na vida. Não há bancos ao longo da trilha, e as beiradas são irregulares. Isto significa que quando eu quero dar uma pausa, como faço freqüentemente, tenho que me apoiar nas eclusas ou nas passarelas de pedestres, cheias de musgo, e acabo cuspindo nisso tudo. A preponderância de cocô de cachorro na área é surpreendente. Só uma vez peguei um no flagrante, mas de onde vem todo o resto é um mistério. Talvez os donos pensem que esta área seja própria para isso, o que eu não saberia dizer se é verdade. Há vezes em que meus olhos ficam vidrados no nada a imaginar como as coisas eram antigamente, quando a superfície do lago ainda se movia tocada por coisas que não eram mosquitos; cavalos com olhos negros feito jabuticaba e barcos cargueiros em movimentos ondulantes, com suas cargas supostamente importantes, no tempo em que eram úteis. Nas primeiras semanas do desaparecimento de Cora, eu tinha quase certeza que a encontraria jogando migalhas de pão aos patos ou sentada na escadaria esperando que eu voltasse. No primeiro mês, eu poderia jurar tê-la visto, bebendo cidra com adolescentes, mas era outra garota bem mais nova.

A gente nunca nadou ali. Era a única água que havia perto de nós, mas não podíamos entrar nela. Acho que isso lhe doía, ela gostava de pensar que era um peixinho. E digo que ela gostava porque eu a vi nadar. Ela mantinha as costas para cima e a cabeça baixa, e virava-se rápida e freqüentemente em busca de ar e então enfiava a cara vermelha e sem fôlego novamente na água. Os garotos do condomínio dominavam o canal no verão, mergulhando com shorts compridos e sapatos velhos para o caso de haver alguma coisa que pudesse furar seus pés. Eles esguichavam aquela água suja em nós à medida que passávamos, por molecagem ou por estarem de saco-cheio daquilo tudo, quem sabe?

Havia então aquele curioso pé-de-meia na lavanderia. Toda vez que eu descia até o porão acabava por esbarrar naquele pé-de-meia preta e imaginava seu dono. Ele tinha sido lavado, mas nunca fora colocado na secadora. Sei porque ele estava molhado da primeira vez em que o peguei. Normalmente, eu pego esses objetos perdidos e os coloco na parte do guarda-roupa que costumava ser de Cora. Como as sandálias são uma raridade, achei estranho o fato de que as únicas duas que eu encontrara formassem um par. A primeira estava dependurada na cerca de um parque, presa pelo fecho de couro marrom, os dedos apontando para baixo. Eu já estava a caminho de casa com o meu achado quando vi a segunda, dependurada na cintura de um homem como se fosse um amuleto. Ele não me agradeceu pelo par; eu não acho que ele queria duas sandálias batendo em suas coxas. O achado mais incomum foi a sola completa de um sapato plataforma. Ela é o meu tesouro pessoal; a imagem de alguém andando bêbado e cambaleante para casa funciona como um consolo. Eu não quero pegar aquele pé-de-meia, não ainda.

De certa forma, eu estava preparada para isso. Cora tinha o espírito cigano; foi a primeira coisa que percebi nela. Ela não falava sobre onde havia morado ou tampouco o motivo pelo qual havia se mudado, apenas sobre o que a mudança fizera com ela. Ela não era capaz de explicar, dizia, era como se um freio que tivesse sido liberado de repente; e ela poderia chorar por dias, mas tinha que partir. Teria ela chorado quando me deixou?

Eu não conseguia imaginar para onde ela teria se mudado e não havia ninguém para perguntar. Eu nada sabia sobre sua indumentária, ou sobre sua família. Cora se referia a um ou outro parente distante de vez em vez; ela contava uma história sobre a irmã pintá-la com emulsão branca quando ela tinha quatro anos e uma outra sobre pegar a bicicleta de seu tio, mas eu nunca encontrei essas pessoas. Estou vendendo o peixe que comprei. Eu me lembro sim, quando ela pintou a cozinha de verde. Ela tentou fazer uma junção uniforme entre o teto e o topo da parede usando uma régua de aço e um pincel de 1 centímetro, mas sua mão não era firme o suficiente. Uma das extremidades ficou irregular, e sempre que ela esperava a comida ficar pronta era justamente lá onde ela fixava o olhar. Eu acabei gostando daquilo e disse a ela que a mim eram como ondulações. Ela ria disso. Demorei vinte e cinco anos para encontrá-la da primeira vez. Se eu soubesse que teria que esperar o mesmo tanto novamente eu desistiria de reconstituir aquele dia na minha cabeça, desde a manhã em que levantamos da cama até onde eu vi aquele pato com as pernas escancaradas sobre os pés de marijuana, como se faltasse algo.

Vou dar uma saidinha, mas não para repetir os mesmos erros do passado. Desta vez organizei meus troféus antes de sair. Uma das botas tinha um monte de mofo envolto no salto, como se fossem pêlos que nele tivessem crescido. Eu calcei essa, e o sapato marrom que precisava ser amaciado. O resto eu alinhei ao longo da porta, e aquela singela exposição me impressionou. Eu tinha vários sapatos pretos de homem com a sola ou o salto meio soltos, mas preferia o estilo das botas e dos sapatos de salto agulha. Sapatos com uma certa altura pareciam liderar – essa era a impressão que eu queria dar, um batalhão avançando. Eu arranjei as meias como se fossem capacetes maleáveis fechando suas bocas entreabertas.